O capítulo IV do Código de Defesa do Consumidor trata da “qualidade de produtos e serviços, da prevenção e da reparação dos danos”. Dividido em seis seções, há uma prescrição aprofundada de que as relações contratuais entre fornecedores e consumidores deve atender a um dever contratual que garanta segurança ao consumidor. A primeira seção, por exemplo, trata especificamente sobre tal dever, trazendo três artigos inteiramente voltados aos cuidados que o fornecedor deve ter com esse aspecto (artigos 08–10).
Dessa preocupação deriva a segunda seção, que trata da chamada “responsabilidade pelo fato do produto e do serviço”. Aqui há um detalhado sistema de responsabilidade civil objetiva, tratando dos fatos do produto e do serviço, que podem colocar em risco a segurança do consumidor.
Para o tema desta coluna, interessa observar que o caso fortuito não figura entre as hipóteses de exclusão de responsabilidade civil do fornecedor, previstas nos artigos 12, §3º e 14, §3º. Embora não exista a sua previsão expressa no CDC, jurisprudência e Dogmática têm admitido essa hipótese de afastamento da causalidade na responsabilidade civil, que retira as suas raízes da sistemática do instituto insculpida no Código Civil.
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O caso fortuito é prescrito pelo Código Civil como sinônimo de força maior no art. 393, especificando-se, no parágrafo único, que “o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Conforme Otavio Luiz Rodrigues Jr e Rodrigo Xavier Leonardo, é preponderante na Dogmática a opinião de que caso fortuito e força maior são institutos equivalentes segundo a sistemática do Código Civil. E para os autores, com a ressalva de algumas exceções na legislação especial, os efeitos do caso fortuito e da força maior são idênticos, razão por que não existiria sentido prático em distingui-los. Há, na Dogmática, quem até elabore diferenciações abstratas entre os institutos, embora ao fim se reconheça a ausência de relevância prática na distinção. O efeito primário do caso fortuito ou força maior seria “uma isenção de responsabilidade pelos prejuízos resultantes do casus”, que seria um evento necessário e impossível de evitar ou impedir.
Contudo, pela própria natureza das relações de consumo — especialmente sob a luz do profissionalismo dos fornecedores — viu-se necessária a elaboração da distinção entre o chamado fortuito interno e o fortuito externo.
A jurisprudência do STJ tem contribuído fortemente para o estabelecimento de parâmetros e critérios que procuram garantir maior segurança jurídica e objetividade para a solução de casos. Tratando especificamente do fortuito externo e o fortuito interno, tem se entendido que este é aquele acontecimento que tem relação com a atividade desenvolvida pelo fornecedor, de forma que não exclui a responsabilização civil; aquele é totalmente desconectado, estranho e alheio, com a atividade desenvolvida, admitindo-se, nesse caso, o afastamento da responsabilidade do fornecedor.
Esse entendimento consolidou-se em algumas situações paradigmáticas. A título exemplificativo, o Superior Tribunal de Justiça julgou caso no qual um menino de seis anos, em um passeio escolar, foi brincar em um escorregador e caiu sobre o próprio braço, causando-lhe fraturas graves no cotovelo e punho, tornando necessária a colocação de pinos mediante cirurgia. Nessa situação, entendeu o STJ que a salvaguarda da integridade física dos alunos faz parte da sua atividade de ensino, i.e., “o colégio é responsável pelo bem estar das crianças, tanto dentro do estabelecimento de ensino, quanto durante os passeios por ele organizados”. Assim, embora tenha reconhecido tratar-se de fortuito, qualificou-o como interno, não se excluindo a responsabilidade da instituição de ensino.
Outro caso de grande repercussão foi o episódio do atirador da sala de cinema no Morumbi Shopping, em 1999, quando um jovem, estudante de medicina, entrou na sala de cinema e, portando uma metralhadora, abriu fogo contra o público, matando três pessoas e ferindo outras quatro. Nessa situação, o Tribunal analisou os elementos do caso e afirmou que não se revelaria “razoável exigir das equipes de segurança de um cinema ou de uma administradora de shopping centers que previssem, evitassem ou estivessem antecipadamente preparadas para conter os danos resultantes de uma investida homicida promovida por terceiro usuário, mesmo porque tais medidas não estão compreendidas entre os deveres e cuidados ordinariamente exigidos de estabelecimentos comerciais de tais espécies”.
Como pode ser observado na própria fundamentação, o ataque de um criminoso fortemente armado seria fato estranho à atividade desenvolvida pelo shopping, razão pela qual seria um fato capaz de excluir o nexo causal e afastar a responsabilidade civil. É importante destacar, ainda, que o fato nunca é analisado em si mesmo, mas assim o é dentro do contexto da atividade do fornecedor. O ataque criminoso de alguém fortemente armado tem uma valoração em um cinema em um Shopping; outro em uma instituição bancária.
Mais recentemente, o STJ enfrentou caso que chamou a atenção, envolvendo acidente que levou uma utente à óbito no metrô de São Paulo. No caso, uma jovem caiu na via férrea na estação Barra Funda em decorrência de um desmaio, o que levou ao seu atropelamento. No julgamento do REsp, indagou-se se haveria um fato do serviço apto a ensejar a responsabilização do metrô ou o desmaio da jovem, caindo na linha férrea, seria um fortuito externo?
A resposta da Corte passou por reconhecer, também nesse caso, a existência de fortuito externo. O que merece destaque nesse caso, contudo, é a discussão da técnica que se colocou. Isso porque as linhas metroviárias de São Paulo possuem tecnologias distintas. As linhas 4 (Amarela) e 5 (Lilás) são operadas por concessionárias e apresentam uma tecnologia mais moderna; possuem as “portas de plataforma” (Platform Screen Doors — PSD), que são espécies de “paredes” de vidro, separando os utentes dos trilhos, de forma que apenas abrem quando o metrô está na estação. Assim, caso a jovem tivesse sofrido o desmaio em alguma dessas linhas, não teria caído no trilho pelo fato de que lá existem esses bloqueios.
A discussão que se colocou, portanto, foi: não haveria uma falha na prestação do serviço, em face da ausência dos mecanismos necessários para garantir a segurança dos usuários contra essa espécie de acontecimento? Ou seja, caso o desmaio tivesse ocorrido nas linhas equipadas com PSD, o óbito não teria ocorrido. Logo, não estaria configurado o fato do serviço?
A resposta do STJ foi no sentido de que, além de se tratar de fortuito externo, a mera existência de tecnologia superior (linhas com PSD) não transforma as outras tecnologias, ipso facto, em tecnologias defeituosas. Isso porque o próprio artigo 14, §2º, CDC prescreve que “o serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas”.
A regra da responsabilidade civil objetiva que opera dentro do CDC (excluídas exceções como aquelas previstas no art. 14, §4º), faz com que a exclusão da responsabilização do fornecedor acabe ficando bastante limitada à verificação da causalidade, aspecto esse grifado pelo Min. Luis Felipe Salomão. Dentro das hipóteses de exclusão da causalidade, é possível de se verificar, portanto, que a jurisprudência observa critérios que se entrelaçam. Ora, é bastante evidente a configuração de um dano na medida em que um passageiro morre em uma das linhas do metrô. Mas, no caso analisado, não ficou configurado um defeito no serviço, seja pelo fato de ocorrência de um fortuito externo (desmaio), seja pelo fato de que a existência de equipamento mais moderno e seguro não configura, por si só, um defeito na prestação dos serviços.
Com tais julgados e suas respectivas fundamentações, vê-se a grande contribuição que o Superior Tribunal de Justiça tem prestado para conciliar a especificidade do profissionalismo do fornecedor — e seu ônus decorrente da responsabilidade objetiva — com a existência de situações imprevisíveis no âmbito das relações de consumo.
Fonte: Conjur